23 de janeiro de 2014

2 ou 3 coisas que sei sobre ela (filme)

O Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas a Mônica queria ver o filme do Godard...


A citação acima era a única referência que eu tinha sobre Gordard. (Embora eu sempre diga nas rodinhas cults que já vi Je vous salue, Marie, claro)

#diva #paris #nouvellevague
Pois então, seguindo a lista dos tantos filmes pra ver antes de morrer, assisti esse. Duas ou três coisas que eu sei dela é um filme sobre os limites da linguagem. Para falar sobre Paris, ou sobre a linda Juliette Janson, ou sobre o absurdo de abafar com propaganda e consumo os gritos que ecoavam da guerra no Vietnam, ou sobre a ressignificação do espaço urbano em tempos capitalistas e homogeneizantes, Godard precisa da linguagem, esse conjunto de símbolos, imagens, sons e palavras que tornam compreensível o pensamento humano. Só assim ele pode dar significado às coisas - e, dando-lhes significado, faz com que elas existam de fato: o que não pode ser nomeado não existe.
Assim, sua luta é a de conseguir fazer com que a linguagem - com seus limites - traduza e exteriorize sua consciência. O filme é ele todo essa tentativa, e a sua estrela é esse processo: as possibilidades e os impedimentos da linguagem, mostrados em quadros, fragmentos que dão a ver uma estrutura maior, é a linguagem como experiência e reflexão. 

O filme não tem história porque experimenta uma maneira de contá-las, as histórias. É um pré-filme, aberto, em construção. Entretanto, nesses fragmentos - duas ou três coisas, conhecemos a Paris e a dona de casa que se prostituem para manter o seu padrão de consumo suburbano de classe média, inflado pelos produtos novos que todos os dias chegam dos Estados Unidos. Vemos o aparente luxo, a modernidade superficial que brilha para velar o indizível, o irrepresentável: a guerra.

Acho que é um filme essencial pra quem se interessa por linguagem e semiótica. Pra quem não curte essas drogas mais pesadas, vale a pena pelos figurinos e pelos flashes glamourosos e modernosos da Paris dos anos 60. Quem quer saber mais fun facts sobre Godard, nouvelle vague e esses aspectos extra-obra, google it

#novinhos #work 
(Procuro fazer as resenhas a partir de reflexões que a própria obra me inspira - se eu preciso do google pra entender minimamente do que uma obra fala, ela falhou como obra pra mim, e eu falhei como audiência pra ela, não fomos feitas uma pra outra, sorry. Nesse sentido, confesso que meu orgulho pessoal foi ter entendido a referência de Godard a Bouvard e Pecuchet: uma estrelinha dourada a mais na minha carteirinha de cult que pega todas as referências, yeah!)



Além disso, pra quem quiser citar o filme sem tê-lo visto de verdade (acontece nas melhores famílias), fica a frase a linguagem é a casa onde o homem habita, que Godard estetizou a partir de uma formulação de Heidegger (essa referência eu tive que googlar) e a sensacional E se você não conseguir LSD, compre uma TV a cores.

18 de janeiro de 2014

12 homens e uma sentença (filmes)

Como uma das resoluções de ano-novo tenho o propósito de assistir um filme por dia em 2014 - como agora tenho tempo de sobra, não tenho desculpa pra não assistir, finalmente, aqueles filmes que eu sempre digo que já vi dez vezes quando quero parecer cult.

Sem saber bem como escolher os filmes, resolvi recorrer a uma dessas listas "tantos filmes pra ver antes de morrer". Ainda que a seleção me pareça um pouco arbitrária, é um começo concreto - e evita que minha resolução seja procrastinada.

Spoiler alert: minhas resenhas podem, eventualmente, trazer comentários sobre o fim das histórias, porque acho que ver o que quer que seja tendo como único interesse saber o final é um tanto quanto imaturo e superficial. Já sabemos todos como a história mais importante de todas - a nossa própria - termina, e nem por isso viver se torna menos interessante, né? Então, com filmes e livros é a mesma coisa.

Seguindo, então, essa lista, comecei por assistir* o filme 12 homens e uma sentença (12 Angry Men). A versão canonizada, must see, é a original, de 1957, mas eu, herege que sou, assisti as duas versões e preferi o remake, de 1997.

Como o título no Brasil deixa claro (em Portugal a tradução foi mais [?] fiel: 12 homens em fúria), um júri formado por doze homens tem a tarefa de decidir se um jovem porto-riquenho acusado de ter matado a facadas o próprio pai é culpado ou não. A decisão do júri - composto por representantes da sociedade civil americana aleatoriamente escolhidos - deve ser unânime, e dela não cabe recurso. 

Esses homens são colocados numa sala - praticamente a única locação do filme - onde deverão discutir até chegar a um veredito. Numa votação preliminar, onze votos indicam o réu como culpado, e apenas um considera que não há provas suficientemente irrefutáveis da autoria do crime. 

O júri é, então, obrigado a discutir novamente todas as evidências do caso, até que a unanimidade seja alcançada. E, na hora e meia de discussão que se segue, assisti um texto brilhante sobre racismo, preconceito, intolerância e direitos humanos. 

Sim, digo que assisti um texto porque, nas duas versões, é ele que importa. Sem efeitos especiais e sem locações deslumbrantes, é o texto que faz desses dois filmes imperdíveis. A direção e a atuação importam na medida em que privilegiam o texto - o calor da sala do júri realça a tensão do que está sendo discutido ali - a sentença de morte de um ser humano; os movimentos da câmera privilegiam a melhor compreensão do texto, não há excessos, há apenas a eloquência do texto, a principal estrela nos dois filmes.

Na versão de 57, os representantes da sociedade civil americana são todos homens brancos. Identificados pelo seu número - de 1 a 12, breves diálogos revelam que entre eles  há comerciantes, profissionais liberais, empregados da burocracia, um imigrante naturalizado. O homem que coloca em dúvida, sozinho, a culpa do réu é vivido por Henry Fonda, cujos olhos tristes eu não gosto. Mas não é só por isso que prefiro a versão de 97. Quarenta anos depois da primeira versão, entre os novos doze representantes da sociedade civil americana agora há negros - e colocar um deles no papel do jurado que faz o discurso mais francamente racista e xenófobo de todos foi uma jogada sensacional.
Essa versão, por mais próxima e por atualizar de maneira eficiente os conflitos presentes no primeiro filme, conversa mais comigo, e é por isso que gosto mais dela.

Um a um, os jurados são convencidos, por meio do debate, de que as provas apresentadas no tribunal não são suficientemente definitivas para que o jovem réu seja considerado culpado. Não se trata de julgá-lo positivamente inocente, trata-se de não se poder dizer, com absoluta certeza, que ele é culpado. Pode ser, e pode não ser - e essa dúvida, de acordo com a letra da lei, é suficiente para que ele continue vivo - já que a condenação implicaria sua sentença de morte.

a melhor cena da versão original:
o discurso honestamente xenófobo
 que exige dos outros membros do júri
uma tomada de posição
A exposição dos argumentos que tomam por irrefutável a culpa do jovem revela um discurso assombrosamente preconceituoso e desgraçadamente atual: é culpado porque deve ser culpado, porque nada indica que seja inocente, porque nasceu num cortiço - produtor de bandidos por excelência, porque essa gente é criada pra ser violenta, porque é da natureza deles roubar e matar, porque não se pode esperar nada de diferente desse tipinho. (acho mesmo que li todos esses argumentos ontem, nos comentários de uma notícia qualquer que envolvesse negros ou pobres no Brasil - supondo que não sejam sinônimos). 

O gesto revolucionário do homem que se nega a decidir tão sumariamente a sorte de outro é o de elevar esse outro ao status de um igual - é a empatia de colocar-se no lugar desse outro, de imaginar-se a si mesmo réu, imigrante, pobre, indefeso - e a partir daí dedicar seu tempo e seu esforço a discutir se a culpa presumida pode ser considerada culpa materialmente comprovada.

Esse texto me remeteu imediatamente aos nossos julgamentos públicos e midiáticos, em que a culpa presumida é mais do que suficiente para que alguém tenha a honra manchada, a vida devassada, a privacidade invadida. Nomeadamente, casos como os da menina Isabela Nardoni e do Mensalão me vêm à mente - casos cujo julgamento foi pro-forma, porque a condenação da opinião pública clamava pela execução sumária da reputação dos julgados tão logo os casos tornaram-se conhecidos.

Versão de 97,
minha preferida e a que eu indico
Me pergunto se eu teria a coragem de ser o homem que levanta a dúvida, que respeita o princípio democrático da presumibilidade da inocência de quem quer que seja, correndo o risco de ser eu mesma rotulada como advogada do diabo, como cupincha de criminosos, como cúmplice de crimes hediondos. Quero ter essa coragem, porque sendo eu o réu - e nada me garante que eu nunca venha a sê-lo, gostaria que alguém levantasse essa dúvida por mim.


Se o filme tivesse que ser refilmado hoje, seria impossível não colocar entre os representantes da sociedade civil americana também mulheres - o que daria um novo fôlego pra esse mesmo texto que, encenado há quarenta anos, continua sendo revolucionário, forte e necessário. 

Bom, menos um filme na lista dos que eu sempre digo que vi e nunca tinha visto de verdade! Faltam agora 364 filmes para cumprir a meta do ano. Não vou resenhar todos, porque resenho só as coisas de que gosto. Aceito indicações de mais filmes, e, para o blog, aceito - e quero! - resenhas feitas por vocês, do que quer que seja :)

___________
* uso o verbo "assistir" como transitivo direto, porque o contexto é suficiente para a perfeita compreensão do sentido do verbo por qualquer falante nativo de português - tenho certeza que não ocorre a ninguém que eu vá "ajudar" o filme, né?

16 de janeiro de 2014

A morte de Ivan Ilitch - livro

Ivan Ilitch sabia que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo.

Imagine um homem que passou a vida a buscar momentos e situações confortáveis, que não apresentassem perigos ou contratempos, que fossem idealmente adequadas à sua noção de conforto e estabilidade. Um homem que sempre enxergou a si próprio como especial e único, merecedor de todo o bem-estar do mundo que lhe caísse no colo, que pudesse obter com o mínimo de esforço - ou ao menos sem que fossem necessários grandes investimentos que pusessem em risco a segurança de seu modo de viver, o conforto de suas relações, a superficialidade do verniz com que cobria sua existência.

Imagine que esse homem, que jamais lutou por nada, mas achou-se naturalmente merecedor de tudo, descobre que é mortal no momento em que começa a morrer.

#descanso #profeta #susse
#outdoor #façaamornãofaçabarba
Essa é a história de "A morte de Ivan Ilitch", romance publicado pelo russo Lev Tosltoi, em 1886. A grande surpresa dessa leitura - indicada pra mim pelo professor Paulo Bezerra no dia da defesa da minha dissertação de mestrado - foi perceber que algo que é comumente é identificado como um fenômeno ultra-hiper-pós-moderno, único e específico da nossa época, é tão antigo quanto a noção de que o ideal de uma vida satisfatória - e talvez até plena - é ter o máximo possível de conforto e comodidade.

Ivan Ilitch morre lentamente, tão lentamente quanto o tempo que precisa para perceber que sua vida confortável e sem riscos foi, afinal, um grande desperdício de oxigênio - e que aquilo a que chamava "viver" não passou de uma sombra, um jogo mal jogado de aparências e superficialidade.

#work #gênio #newbook
#lidecomisso,Dosto!
O título do livro não ilude o leitor sobre o desfecho da história - o que importa, então, é saber apreciar com fascínio o caminho magistralmente desenhado pelo autor. Tolstói dá a ver a agonia do personagem que se debate entre vãs esperanças e um insistente apego àquilo que chamava de Verdade. Ivan Ilitch não pode morrer até que tenha deixado de insistir no que chamava de vida - antes de morrer - e libertar-se finalmente da dor - Ivan Ilitch precisa desistir de viver, para então, viver pela primeira e derradeira vez.

Recomendo a leitura - que é rápida, comovente e intensa - a todos que desconfiam que o que chamam de vida - ainda mais se for uma vida satisfatória e confortável - não é bem vida, mas qualquer outra coisa feita de plástico ou de borracha ou de bits, com sabor e aroma artificial de morango ou tutti-frutti, vendida a prestação numa vitrine brilhante, por uma funcionária sorridente de uma marca multinacional. 

A morte de Ivan Ilitch é a morte - a agonia - de todos os que morrem sem nunca ter vivido - um fenômeno tão antigo quanto a noção de que a vida ideal é confortável, tão atual e presente quanto anúncios que vendem vidas de 60 polegadas, tão doloroso e cruel como descobrir a inutilidade de tudo o que se viveu no momento em que se está morrendo.