13 de novembro de 2013

José e Pilar - documentário e livro

José e Pilar é um documentário de Miguel Gonçalves Mendes, português, numa produção brasileira, espanhola e portuguesa. Durante 2007 e 2008, a equipe do documentário acompanhou a rotina de José Saramago e Pilar Del Rio, e a partir do material coletado e das entrevistas, Mendes contou uma bela história de amor, companheirismo e compromisso com o trabalho por um ideal.


Depois do sucesso do filme, foi lançado o livro José e Pilar - conversas inéditas

Eu estava cheia de ideias pra essa resenha, mas acabei de reler o Prefácio ao livro escrito por Valter Hugo Mãe, e, bem, o homem escreve bonito. Deixemos que ele fale.

DIÁLOGOS

A expressão de José Saramago teve sempre que ver com a oportunidade do homem comum. A sua voz, tão aparentemente simples como sábia, aspirou sempre à universalidade e o que mais fez foi revelar. 
[...]
O que o trabalho de Miguel Gonçalves Mendes tem representado para o tesouro do testemunho de Saramago é de valor inestimável. É o melhor dos legados para todos quanto vivem e viverão, permitidos que ficam para o acesso à intimidade com o grande mestre, ou, por outras palavras, para o acesso a um diálogo eminentemente desmascarado com o grande mestre. Mas o grande mestre nunca estaria completo nesta sua dimensão mais pessoal sem a companhia de Pilar del Río, tão distinta quanto já complementar do escritor.
Em certo sentido, e porque talvez o grande patrimônio de José Saramago no que respeita às suas ideias se estendeu por tantos livros e infinitas entrevistas, é em Pilar del Río que este volume encontra o seu mais raro documento. A par de tantas declarações e explicitações de Saramago, é o retrato de Pilar que adquire uma força impressionante, força que creio já não surpreender ninguém, e que creio estar também na base da grande comoção que tem criado o documentário José e Pilar e que agora, com este livro, se adensa. Pilar del Río é, sem dúvida, uma das mais imperdíveis mulheres dos nossos dias. De opiniões rotundas e sensibilidade austera, é uma mulher de inteligência quase assustadora, reclamando para si a liberdade intelectual que, por contínuo preconceito, muito se deixa reservada para os homens. Eu arriscaria dizer que este livro é a oportunidade, nossa, a dos leitores, de encontrar Pilar e, por isso, completar Saramago. É a grande partilha com ela que permite entender melhor o universo do escritor, o espaço afetivo em que se movia o incondicional da construção familiar em que se viu protegido, ou, como se deve dizer, onde se viu amado.
Miguel Gonçalves Mendes talvez não o soubesse quando a isso se propôs, mas agora é cristalino que o seu trabalho, assente na sua persistência simpática, oferece ao mundo um recurso de tão grandiosa importância. Uma importância até emocional, que comove, por nos permitir seguir com o mundo como se Saramago estivesse ainda vivo. Claro que o seu discurso está vivo e quem somos ainda urge pela utopia humanista que tinha para nós. O mundo vai precisar de José Saramago por muito e muito tempo. Desconfio que para sempre. Este livro é uma oferta generosa para a satisfação dessa necessidade.

Perguntam a Pilar "É difícil ser presidenta da fundação (José Saramago)?" e ela responde "é difícil ser mineiro". 

E pronto. E é isso. Pilar é uma mulher privilegiada (porque educada, porque europeia, porque branca, porque famosa, rica, influente) que sabe muito bem o que deve a esses privilégios: trabalho, energia, compromisso. Foi com essa consciência que trabalhou com e por José, a despeito dos murmúrios de que ele precisava descansar. Essa consciência é exatamente a antítese do pensamento classe-média-sofrista e é por isso que, para nós, bunda-moles mimimizentos que somos, soa tão radical ouvir uma mulher que não se deixa sentir-se cansada ou triste. Mas isso é fantástico, porque é disso que o mundo precisa: de gente que possa trabalhar por mundo melhor e que, de fato, trabalhe por um mundo melhor. 

A história de José e Pilar é um exemplo (meu exemplo) de que amor nada tem a ver com dependência ou com anular-se para que o outro apareça. Amor é companheirismo, não concorrência.
Pilar é jornalista, escritora e presidentA de uma das mais recentes e, já, importantes fundações culturais de Portugal, e dedicou seu trabalho a ampliar o alcance do trabalho de Saramago porque acreditava pessoalmente na grandeza e na importância de sua obra, e não somente porque José era seu marido. 
José é o grande Saramago, primeiro e único Nobel de literatura em língua portuguesa, exilado e censurado em seu país, acolhido pela Espanha e por Pilar, em Lanzarote, onde não deixou de trabalhar, onde trabalhou até que a vida cessasse.

Amor, força, ternura, compromisso, liberdade, coragem, afeto. A história de José e Pilar tem muito a nos dizer sobre nossas próprias histórias.

Assista o filme aqui. Escute a trilha sonora aqui. Leia trechos do livro aqui.

5 de novembro de 2013

Cultura e Estudos Culturais

Dia desses, publiquei um post revoltadinho no facebook. Como texto revoltadinho não leva ninguém a lugar nenhum, aqui vai um comentário mais elaborado sobre uma questão que considero importante.

A proposta desta disciplina "Cultura e estudos culturais", umas das quatro que farei nesse primeiro semestre (lembrando que o ano acadêmico no hemisfério norte não coincide com o ano civil), é levar-nos a uma reflexão sobre o desenvolvimento dos estudos culturais em determinada cultura. No caso, a inglesa, porque é a área de interesse da professora, inglesa.

A nossa primeira leitura obrigatória foi "Cultura e Anarquia", de Matthew Arnold, pai dos estudos culturais na Inglaterra. O ensaio de Arnold exorta os homens a procurarem a perfeição, por meio da cultura, que é o resultado da doçura e da luz, doçura, beleza, luz, inteligência. Para Arnold, essa é a vocação maior do ser humano, independentemente de sua classe (baixa, média ou alta, classes bem determinadas e estanques), e qualquer outro tipo de prática social e política que não considere esse ideal máximo de iluminação nos levaria a um estado de anarquia e obscuridade.

A segunda leitura foi "Ficção e o público leitor", em que Quenny Leavis faz um estudo detalhado sobre o fenômeno dos best-sellers no início do século XX. É uma tese de doutorado, cujo argumento principal é o de que o aumento "descontrolado" do letramento na sociedade inglesa levou a uma deterioração da qualidade do gosto popular. Se nos séculos XVI, XVII, e até meados do século XVIII não havia tantos leitores, pelo menos o que se lia era de qualidade: difícil, elaborado, com um bom vocabulário: Shakespeare. Ao contrário do que se vendia em profusão na atualidade dela, livros de fácil digestão, que retratavam personagens vulgares - tão vulgares como o público ao qual se destinavam. Basicamente, ela classifica como de "baixa cultura" tudo o que depois Ian Watt identificou como o gênero mais amado até os nossos dias: o romance.
Vocês podem imaginar o sofrimento que foi para os alunos do doutorado em literatura e cultura, que têm entre suas pesquisas principalmente a valorização das vozes de quem foi sempre tachado como "subalterno", que tentam enxergar o mundo sob uma ótica mais igualitária e justa, ler esse tipo de texto preconceituoso e elitista. O sofrimento virou revolta no debate em sala de aula, claro. Mas a proposta era lermos como de cabeça aberta, procurando validar os argumentos apresentados, afinal, eram textos que foram fruto de muita reflexão.

E então percebemos que, ainda que para nós cada linha pareça absurda e ofensiva, ainda hoje não seria - não é - difícil encontrar quem não veja problema algum nesse tipo de argumento, o de que há uma elite culta que deve selecionar o que é bom e o que é ruim, baseando-se em critérios estéticos imparciais e universais, e recomendar fortemente o que for considerado bom para a maioria inculta, para que dessa forma todos possam um dia, lentamente, atingir um estado elevado de cultura. 

Para Arnold, o padrão de beleza e bondade eram os ideais clássicos. Para Leavis, o drama elizabetano: Shakespeare (leiam shakespeare ou não leiam nada!). Ambos estavam seriamente preocupados em estabelecer padrões mínimos de qualidade, e não deixar que as massas estivessem sempre alienadas pelas coisas de má qualidade que eram vendidas sob boas propagandas. Que mal há nisso, não é mesmo? Quem de nós não quer que as pessoas parem de assistir big brother e comecem a ler Machado de Assis?
(a Leavis não quereria, Machado é romancista, e romance é coisa de gente preguiçosa)

Bom, ainda que esteja cheio de boas intenções, como o inferno, esse tipo de discurso não leva em consideração uma coisa um tanto quanto importante para nós, que defendemos um modelo humanista de educação: a autonomia de cada pessoa. Sim, por que quem vai definir o que é "bom"? o que é essencialmente de "qualidade"? Que poder é esse que a elite econômica e intelectual se arroga de determinar o que presta e o que não presta? Baseada em quê? Tradição? Como se essa própria tradição fosse algo imutável, indiscutível, estanque. Houve tempos em que os clássicos não serviam mais como modelo de perfeição. E depois eles voltaram, e depois foram embora, e depois voltaram de novo. E o romance? O que hoje é considerado erudição, ontem era folhetim de quinta, feito pra vender jornal. E amanhã, quem garante que o nosso must-to-hate Paulo Coelho não será o baluarte da grande literatura brasileira?
Além disso, que valor pretensamente universal de qualidade é esse que vai dizer que o que é bom para a sociedade aristocrata inglesa é bom também pra mim, brasileira, mulher, negra, "pós-colonial", enfim, criada em numa realidade prática totalmente diversa, heterogênea, desigual? 

Um pensamento que se proponha considerar todas as pessoas como iguais em direitos e capacidades, não pode admitir que algumas delas são mais capazes de discernir o que é bom e o que é ruim do que outras. É óbvio que não estou defendendo de forma nenhuma as gerações atuais parem de educar as gerações seguintes - eu sou professora por formação!

O que estou dizendo é que "educação" pode significar várias coisas. Pode ser instrumento de dominação ou de liberdade. Depende do tipo de regime que o impõe. Se, num contexto micro, os pais educam seus filhos para que continuem a obedecer o que os pais acham correto, verdadeiro, sublime, importante, e não se deixem corromper por interferências externas, o que esperar de um regime político governamental que quer evitar todo e qualquer tipo de rebelião, contradição, desordem, insurreição?

Pois é, não é tão simples assim. Não é questão de ponto de vista: esses autores não só estavam defendendo seus próprios gostos: pelo contrário, trata-se ali de defender o que é, por excelência, bom, não é um gosto pessoal, "por acaso", eu gosto do que é bom, e você, pobre coitado, não. "Por acaso", eu, letrado, educado em boas escolas, intelectual, erudito, classe média alta ou rico, sei o que é bom, e você, ralé, não. Mas não se preocupe: sou tão legal e gente boa e desprendido que posso até te ensinar. Você só vai ter que renegar tudo o que você experienciou como válido e bom até agora e começar comigo do zero. Me agradeça depois.

Essa aparente "neutralidade" é que é o problema. Porque ela não existe, é falsa. Os nossos gostos são condicionados por milhões de influências e contatos, que por sua vez são resultados de relações de poder. Nós, intelectuais, não podemos negar a qualquer pessoa, sim, qualquer pessoa o seu direito ao pensamento autônomo, ou melhor, não podemos deixar de reconhecer em qualquer pessoa a sua capacidade potencial de desenvolver um pensamento autônomo. Se tem que haver educação, e é claro que tem, ela deve ser baseada em princípios de liberdade, de escolhas: a educação formal deve oferecer ferramentas de desenvolvimento e refinamento do pensamento, e não respostas prontas e inquestionáveis.

Por isso, não faz sentido falar de cultura em nível qualitativo. Existem culturas diferentes, que se constituem como conhecimento compartilhado, que podem originar comportamentos positivos ou negativos sob certos aspectos. Isso vai  sempre depender dos critérios de avaliação que estão sendo adotados, e estes devem ser expostos como parciais - porque o são - e devem identificar a sua filiação ideológica de maneira clara e honesta (sonhar não custa, né?).

Enquanto esse surto de honestidade não acontece, cabe a nós, pensadores da cultura do século XXI, dar a conhecer o que está por trás desse desejo benevolente, no caso, inglês do fim do séc XIX, começo do XX, de ter, um dia, com ordem e hierarquia, e com as pessoas "certas" no comando, uma sociedade iluminada e culta. Preconceito, ignorância, presunção, arrogância e, mais importante, um profundo apego ao status quo de centro pensante do mundo, são algumas das idéias perigosas e autoritárias que enformam esse tipo de discurso, e que, de maneira preocupante, sobrevivem até hoje. Temos muito trabalho pela frente.

4 de novembro de 2013

Resenha Livre


Nós não somos do século de inventar palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.

Almada Negreiros escreveu isso no início do século XX. E nós, do século XXI, o que fazemos com as palavras, já inventadas e reinventadas?

Uma resenha é um comentário sobre uma outra coisa ou assunto ou produto ou obra. Ela depende de uma "primeira coisa" pra existir.  A resenha livre, que é a proposta desse blog, é livre em dois sentidos: tanto quanto ao seu objeto: filmes, livros, esportes, objetos, acontecimentos e eventos públicos em geral, quanto à sua forma: crítica, comentário, opinião. Nesse novo blog vou concentrar os textos que falam sobre outros textos - entendendo nesse segundo "texto" qualquer coisa  ou situação que seja passível de ser comentada, analisada, indicada, questionada por um olhar externo.

É usar a palavra pra entender a palavra.

Os meus textos mais pessoais e estetizados - depoimentos, relatos, crônicas - continuam no Sumo da Laranja.

A arte do blog é da Marília Ferreira.

Bruna