9 de setembro de 2014

Lucy (filme)

Aparentemente Hollywood descobriu que a Johansson é a combinação perfeita entre "sexyness" e super-inteligência. Assisti Lucy esses dias, e eis os meus comentários sobre o filme.

Ao contrário do que o trailer indica, Lucy não é um filme de ação. Isso porque as perseguições, capotagens, disparos e lutas corporais, viagens e corridas contra o tempo são intercaladas com longos segundos que tentam colocar numa escala visível em "tempo humano" o que acontece a todo momento sem que a gente se dê conta: as células do nosso corpo se alimentando e se dividindo e se multiplicando, o correr do sangue nas veias, as sinapses no cérebro, a reprodução na selva, enfim, tudo o que a gente tem que ignorar no dia-a-dia para não enlouquecer. Essas pausas podem entediar quem for ao cinema esperando um filme no gênero da série 24 horas.

Essa montagem é coerente com o argumento principal do filme: time is the measure. A única medida é o tempo. Nem volume, nem tamanho, nem distância: apenas o tempo nos faz perceber a existência da matéria à nossa volta e da matéria de que somos feitos. De resto, nada se divide: entre a última molécula da minha pele e a primeira de ar que se segue não há "espaço vazio" que delimite fronteiras: tudo é matéria, e um cérebro que chegasse a usar cem por cento das suas capacidades seria o estágio final da evolução animal: a matéria dotada de auto-consciência, a matéria que sabe que é matéria, a matéria que controla a matéria.

Essa é, basicamente, a ideia que as religiões monoteístas têm de Deus: uma grande consciência do Universo, onipresente, onisciente, absoluta. O discurso de Morgan Freeman (que depois de ser presidente dos estados unidos e deus, manteve a grandeza dos postos hierárquicos que representa no cinema, sendo o maior neurocientista do mundo) sugere que o ser humano interrompeu seu processo evolutivo nos "dez por cento" (uma metáfora pra "pouco", a porcentagem cientificamente comprovada é irrelevante) do cérebro, ao querer evoluir "externamente": com os dez por cento da capacidade cerebral que usamos, construímos e desenvolvemos tecnologias que fazem o que o nosso corpo poderia fazer sozinho, biologicamente, se continuássemos nos esforçando, como fez a nossa ancestral Lucy, filha de macaco, mãe de homem: "humans are more concerned with having than being".

O contraponto entre racionalidade e irracionalidade se dá entre Lucy e o bandidão: à medida em que a capacidade racional dela se expande, ele fica mais animalesco. Esse contraponto é construído com uma série de estereótipos: o mafioso exótico psicopata sanguinário que fala uma lingua que soa aos ouvidos ocidentais de forma bárbara - e é por isso que as legendas em inglês durante os diálogos da máfia são dispensadas - de um lado; a mocinha bonitinha que quer salvar o mundo e se oferecer em sacrifício  para a humanidade em nome do conhecimento de outro lado. (kind of racist, but ok)
















Muito bonitas as intenções da dona Lucy, mas eu, pessoalmente, fico mais inclinada a concordar com o ceticismo do Morgan Freeman no final: não sei se vale o sacrifício. Pelas lições que a História nos têm dado, de nada vale o conhecimento per se, os resultados do nosso progresso intelectual têm sempre dependido da forma com que nós o usamos, guiados pelas nossas emoções mais primitivas: ódio, desejo, medo, empatia.

É essa precisa dose de emoções primitivas e racionalidade combinadas que define o passo em que estamos na escala evolutiva; e é por isso que Lucy (e a interpretação da Johansson dá conta disso) torna-se mais "robótica" e menos "humana" conforme sua capacidade cerebral aumenta. É por isso, também, que ela precisa do policial (olá, Del Rio!) "as a reminder" do que é ser humano, como um guia de empatia que direciona o conhecimento.

Um relacionamento entre duas consciências absolutas é impossível (como seria impossível para muitas religiões a existência de dois deuses), e o relacionamento de uma consciência absoluta com outras inferiores ou "incompletas" é tedioso (daí a sociopatia dos gênios). Nós somos um passo na cadeia evolutiva dos animais, (se concordarmos que aumentar a capacidade cerebral é evoluir), e usamos nossos dez por cento aqui quietinhos. A vida pode um dia chegar a dar o próximo passo nessa cadeia, mas já não seremos nós quando lá chegarmos: será o começo da extinção da nossa espécie, que, a bem da verdade, tem sido mais nociva do que benéfica para o resto do planeta.

Portanto, pra mim, não é nessa utopia do uso total do cérebro que está o argumento do filme, mas nesta pequena epifania: o tempo é a única medida. O super-cérebro controla o tempo e escolhe o foco (Lucy encontra Lucy). Nós não temos o super-cérebro, mas temos, e isso nos baste, a capacidade de focar em algumas coisas, considerando o pouco tempo de vida que nos é dado, com essa consciência finita e imperfeita. E é quando sentimos ódio, paixão, medo ou empatia, sim, essas emoções primitivas, que conseguimos ordenar o caos que nos rodeia, para o bem ou para o mal, e sentir o tempo, a existência, a matéria, de forma mais plena e urgente: a única que importa. 

Inteligência é ver o mundo em sua amplitude e decidir no que vamos deter nossa atenção, Conhecimento não é velocidade e vertigem, mas a imobilidade do tempo, a concentração da intensidade, o controle da atenção, a eternidade do momento.  Inteligência, Lucy nos ensina, é sinônimo de foco.

4 de junho de 2014

X-men - dias de um futuro esquecido (filme)

quanta gente, quanta alegria
Depois de tempos sem escrever, volto a brincar de crítica de cinema com X-men, dias de um futuro esquecido.

Não levo em consideração aqui a história em quadrinhos, que eu não li, só dei uma googlada rápida, nem os outros filmes. O texto todo contém spoilers.

Depois de meses sem ir ao cinema e assistindo filmes por meios ilegais, achei que o Hugh Jackman, o Michael Fassbender e o fofinho do McAvoy mereciam ser vistos em tela grande com efeitos especiais de som pra amplificar esses sotaques britânicos maravilhosos.
Minhas cenas preferidas são a do Mercúrio salvando geral e a do Magneto divando, usando o estádio pra cercar a Casa Branca. Além de ter efeitos especiais, lutas, homens lindos com sotaques idem, Tempestade morrendo maravilhosamente, recomendo o filme como um exemplo de produto feito pra ser blockbuster que consegue ao mesmo tempo trazer uma discussão política interessante.

X-men, aliás, sempre faz isso (ok, no filme aleatório do wolverine com japoneses, não), mas o próprio motivo da série é discutir como nós tratamos aqueles que são diferentes. Até aqui a briga foi o discurso revanchista de Magneto - a melhor defesa é o ataque, quem não teve misericórdia não merece misericórdia, uni-vos mutantes do mundo todo e vamos extinguir esses humanos fraquinhos antes que eles acabem com a gente - versus o pacifista do Professor Xavier - a paz, a cooperação e a convivência harmônica entre povos diferentes é possível e desejável, a educação é o caminho pra autoaceitação das diferenças, a esperança é mais forte do que o medo, as pessoas que fazem coisas ruins também podem vir a fazer coisas boas, se tiverem novas chances e outras opções.

O mérito desse enredo foi trazer ainda mais fortes as nuances dessas duas posições extremas e antagônicas e ligação delas com a experiência pessoal dos dois, Eric e Charles, no caminho escolhido por cada um. Wolverine é o anti-herói que fica no meio dos extremos, e Mística é a peça chave que mostra o poder de uma decisão entre esses dois caminhos.
Focar no crescimento da Mística como mulher que erra e acerta, vacila e duvida antes de tomar uma decisão foi uma escolha que conseguiu juntar a exploração midiática da imagem da queridinha Jenifer Lawrence com uma tentativa bem-sucedida de explorar a complexidade da personagem que resiste a ser servir de joguete entre homens poderosos e inteligentes, que se dá o direito de ficar confusa, de hesitar, de, enfim, ser gente, e não uma super-mulher com uma sabedoria ancestral vinda sabe-se lá de onde.

Esse X-men também pode ser usado nas aulas de história sem culpa. Foi uma escolha dos roteiristas e do diretor situar o passado pro qual Wolverine volta nos anos setenta. A história que serve de fundo pra volta ao passado é a do tratado de paz entre Estados Unidos e Vietnã, e essa escolha não é por acaso. 

Depois da Segunda Guerra Mundial, o american way of life teve dinheiro e prestígio pra espalhar mundo afora que aquele que era o jeito bom, correto e decente de se viver. Toda a cultura, música, valores que a gente importou a partir dos anos 50, é uma forma de celebrar a vida e a alegria, de mostrar ao mundo como se vive em paz e com liberdade, de recompensar os homens que voltaram da guerra com um país livre e mulheres perfeitas. Era a inauguração de um tempo de paz e consumo.

Nada disso combinava com testes nucleares no Japão, com uma intervenção militar, que se mostrou desastrosa, num Vietnã dividido entre norte e sul. Enquanto os governos discutiam diplomaticamente, vietcongs, guerrilheiros comunistas e soldados americanos morriam numa guerra sangrenta e traiçoeira - uma entre tantas da Guerra Fria, que de "fria", teve pouco. 

Nesse cenário, é até compreensível o desejo do dr. Bolivar Trask, acreditando no american way of life como modelo ideal pra humanidade inteira, de unir o gênero humano como uma espécie através de um inimigo comum. É um desejo quase bonito em teoria, mas que na prática foi desastroso: sabemos pelo "futuro" que os humanos que tentaram ajudar os mutantes também foram perseguidos e mortos, num novo genocídio. 

Hmm, gente poderosa unindo a "humanidade", ou pelo menos os cidadãos de bem dela, em nome de um inimigo comum que deve ser perseguido e exterminado... sounds familiar?

O futuro de Xmen de futurista não tem nada, o extermínio sistemático de não-humanos (mutantes culturais!) já aconteceu e ainda acontece. Mas ainda não contamos com super-poderes que nos levem ao passado. O único super-poder que pudemos criar foi a capacidade de termos um olhar crítico sobre a História, e fazer o caminho contrário: o de trazer o passado pro nosso presente, para evitar que os mesmos erros sejam cometidos de novo. Essa é a grande viagem no tempo que X-men, dias de um futuro esquecido, teve o mérito de conseguir realizar.

8 de abril de 2014

Ninfomaníaca Vols. I e II (filmes)

Assisti Ninfomaníaca - que é um filme dividido em duas partes - e recomendo que todas as mulheres façam o mesmo. As nossas reações ao filme dizem mais sobre nós mesmas - nossos preconceitos, medos, memórias, inibições e desejos - do que sobre uma a "qualidade" do filme em si.

Sobre a qualidade do filme em si, quis ler algumas críticas antes de escrever a minha resenha, e percebi que é algo comum fazer uma crítica sem se esforçar minimamente para assistir o filme de verdade. O que vi em muitas críticas foi uma tentativa forçada de encaixar o "personagem", o "mito" Lars Von Trier, como toda a aura de "polêmica" e megalomania que o envolve dentro do filme. Há um afã por desvendar sinais ocultos, metáforas mirabolantes, choques e subversões, sem que haja a humildade do "espectador comum". O crítico que não é um espectador comum - em qualquer arte - pode até ter muita imaginação e erudição, mas sempre vai perder uma parte importante da obra que analisa: aquilo que é óbvio.

Críticos assim se parecem muito com Seligman. Seligman é o cara que encontra Joe caída na rua, e pra quem ela conta a sua história. Ele escuta com um interesse puramente intelectual: o que ele admira em Joe não é a história dela, ou o sofrimento humano e real da sua existência angustiada, e sim a sua capacidade de story-teller. Seligman fica envaidecido por ajudar a "clarificar" a história de Joe com as suas referências eruditas, com seu vasto conhecimento em diversos campos, adquirido por meio de leituras eternas e solitárias. Joe entra no jogo, alimentando ainda mais a vaidade do seu interlocutor, usando os elementos da casa dele para nomear os capítulos da sua história. Sabemos que é um jogo - do qual Joe participa voluntariamente também - quando ela debocha do comentário dele sobre os alpinista que inventou um nó - só alguém totalmente alheio a qualquer tipo de paixão humana poderia se lembrar disso enquanto uma mulher conta sua dramática busca pela recuperação do prazer.

As referências de Seligman são, assim, casuais e aleatórias, e não possuem qualquer ligação intrínseca com a história - como acontece quando esse recurso é usado com um objetivo artístico na "contação" da história. A história de Joe não é sobre pesca, sobre uma pistola ou sobre o sofrimento no cristianismo ocidental - por mais que Seligman ou qualquer crítico queira forçar a imposição dessas e de outras imagens - a história de Joe é uma só: a da inesperada descoberta de, e conflituosa convivência com a sua sexualidade - uma sexualidade feminina.

Von Trier teve que exagerá-la para ter a liberdade da aberração. O desafio de retratar uma mulher que se enquadrasse em padrões de normalidade (se é que ela existe) teria sido maior, e provavelmente ele teria falhado. A ninfomaníaca deu a ele liberdade de criação e de experimentar situações-limite: o orgasmo espontâneo na infância, o sexo casual como prática diária, a frigidez repentina, o conflito entre a busca pelo prazer o instinto de proteção da cria, o fetiche com os negões que não falavam inglês, o sadomasoquismo, a utilização criminosa da sexualidade.

Atingindo vários limites, o diretor passa pelas nuances, entre as quais cada mulher que assiste o filme se posiciona. Provavelmente mulher alguma se identifique totalmente com Joe, mas o espectro amplo de emoções, culpas, medos, desejos e contradições que ela representa e sente conversa com cada uma de nós, como se estivéssemos falando de sexo pela primeira vez diante de uma interlocutora com quem nos sentimos completamente à vontade. Da mesma forma, o julgamentos que fazemos, bom ou mau, da sua conduta, é baseado na nossa própria experiência. Nesse sentido é que digo que é um filme necessário como "indicador" pessoal dos nossos próprios tabus.

Eis o heroísmo e a resistência de Joe: ela fala. É isso que justifica o recurso de montar o filme em flashback: Von Trier, assim como Seligman e todos nós, conhece Joe caída no chão. Não é o diretor que acompanha a vida dela com a câmera, como um observador onisciente e condescendente - ou inquisidor. É Joe que fala por si, que conta o que quer, como quer, apenas aproveitando os elementos da casa de Seligman - o espelho, a isca, a marca de chá no chão - para emoldurar a sua história. É Joe que guia a câmera, não Seligman. E é este ato - o de contar, o de ter de se confrontar com a história da sua vida em algumas horas - que faz com que ela redefina sua própria identidade para si mesma. É a primeira vez que Joe faz isso, depois de anos de solidão, marginalidade e uma resistência confusa a padrões de comportamento sexuais rotulados de normais.
Antes mesmo de Seligman fazer seu discurso feminista - que serve mais pro expectador - Joe já entendeu, já se entendeu, já mudou o discurso tantas vezes repetido na primeira parte do filme de "eu sou um ser-humano ruim" para a posição firme e corajosa de "eu sou mais que isso, eu vou sobreviver a isso, minha sexualidade não me define como pessoa". Seligman faz então seu discurso feminista - puramente politicamente correto e, por isso, teórico e condescendente - e Joe vai dormir achando que encontrou um amigo e feliz por ter se encontrado.

E aqui Lars Von Trier mostra, afinal, que essa não é uma história sobre amizade, é uma história sobre luta - da luta de uma mulher contra sua própria solidão, contra e a favor do próprio corpo, contra a falta de compreensão e respeito que vem de todos os lados. 

Seligman, tão casto ele, afinal, tinha paixão, e muita: estava toda ela direcionada para a sua querida literatura, fonte da sua erudição. Ao ligar sua própria história - humana, não apenas erótica - à literatura do novo amigo, Joe se torna para ele uma extensão dessa paixão, desse fetiche - para ele, ela se apresenta como um corpo para uma paixão que até agora foi teórica e casta. E é assim que esse cara, ao ter desejo sexual pela primeira vez na vida no meio da noite pensa HUM, POR QUE NÃO DISPOR À VONTADE DO CORPO DESSA MULHER FRAGILIZADA QUE EU ACABEI DE AJUDAR? AFINAL, SOMOS AMIGOS! QUE DIFERENÇA FAZ ESSE NÃO MURMURADO NO MEIO DA NOITE? 


But you... you've fucked thousands of men.


(isso é estupro, amigos)


O tiro dela é um tiro nos falsos discursos masculinos emancipatórios e condescendentes, é um tiro no "cara legal" que acha que sexo é moeda de troca da amiga para a atenção dele, um tiro em toda a dissimulação politicamente correta que diz "ok, ok, não tou te julgando, te entendo, mas... aproveitando que você já tá perdida mesmo, vem cá... " Durante toda a história de Joe, uma coisa existe em comum: a sua vontade, a sua decisão, a sua escolha sobre o que fazer e o que fazer com o próprio corpo. O estupro seria a sua verdadeira degradação.

A sobrevivência de Joe a Seligman é a sobrevivência da ação - da experimentação, da tentativa corajosa - sobre o discurso fácil, vazio e prepotente, e é isso que vai fazer com que esse filme ainda seja lembrado e necessário quando todo o frenesi com a parte "erótica" passar.

19 de março de 2014

Her (filme)

Assisti Her (Ela no Brasil, Uma História de Amor em Portugal) já há algum tempo, depois de ficar interessada ao ler esse comentário do alex. 

Além de ter o Joaquin Phoenix lindo no seu estilo futurista-retrô, o filme também conta com a não participação da Johansson - ponto positivo, rs! Vamos às minhas notas:

Sobre o trabalho de Theodore, interpretado pelo JP: minha primeira reação como escritora compulsiva de cartas que sou foi "que mundo é esse em que as pessoas não escrevem as próprias cartas?" Mas depois pensei que nós já fazemos isso: quando dedicamos uma música, um filme, um poema, um romance a alguém que amamos (ou não), estamos usando palavras e gestos de outros para demonstrar nosso amor. Nem todo mundo sabe - ou quer - tentar colocar o que sente em palavras - nas suas próprias palavras: e nem deveria ser assim. Palavras de amor são superestimadas, cada um mostra que ama da sua forma, o que faz diferença é o tempo que leva pra fazer isso. Dedicamos nosso tempo ao que é realmente importante pra nós. O presente mais valioso que posso ganhar de alguém é o seu tempo, a sua presença. Por isso eu entendo menos ainda a empresa em que Theodore trabalha (embora seja o meu emprego dos sonhos): de pouco vale receber uma carta linda de alguém que diz que me ama, se aquela carta não tomou nenhum tempo dessa pessoa - ainda que tenha tomado algum dinheiro.


A sociedade desse futuro não tão distante não tem etnia certa: é, sem dúvida, o filme com o maior número de figurantes multi-étinicos que eu vi em muito tempo - um toque bacana no roteiro de Spike Jonze.

Ao ver Theodore e Samantha (um sistema operacional dotado de uma forma de consciência, sem corpo) vivendo seu amor acima de qualquer preconceito, quem leu Camões já sabe, não vai dar certo: E o vivo e puro amor de que sou feito,/Como matéria simples busca a forma. O que faz o outro ser um outro em relação a mim é o invólucro que reveste os limites e as fronteiras da sua consciência: o seu corpo. Sem essa fronteira, o outro é apenas uma extensão de mim, e eu não sou capaz de ter uma relação com essa extensão: alimento uma relação comigo mesmo.

A minha cena favorita (humano derrota máquina, yeah) é a do piquenique em que o cara do casal amigo diz que o que mais gosta na mulher são os pés. O filme poderia ter acabado ali, mas talvez fosse uma solução simples demais. 

O relacionamento egoísta e doentio (ou perfeito, depende de quem olha) de Theodore com seu próprio ego em forma de OS acaba quando o OS se torna algo sobre-humano, por sua própria programação, feita para evoluir rapidamente e sempre. A vantagem do computador é a velocidade com que aprende coisas, primeiro por repetição, depois por conta própria. Aprende primeiro a experimentar os sentimentos básicos: paixão, ciúme, inveja, insegurança. Depois Samantha os controla, e evolui: evolui tanto que a vida mesquinha de nós que estamos presos a um corpo e a um tempo e espaço definidos e limitados torna-se insuficiente para a consciência superior, desapegada e bem resolvida que ela se tornou, com desafios intelectuais que vão muito além da nossa vã experiência.

O mundo do futuro de Her - aquele meio do filme idealmente feliz em que ele descobre um mundo novo de companhia e amor "ao lado" dela -  é um mundo desejável?
Não.
Mesmo com a trilha sonora linda, não. Alguém que me entende e que faz tudo por mim me impede de crescer. Me tira o grande e insubstituível prazer de qualquer relacionamento, que é justamente poder ver o mundo pelos olhos de outro. Se esse outro é uma extensão funcional de mim, isso se torna impossível. Começo a ver o outro como um objeto, algo que me pertence e pelo qual sou responsável, e, ao mesmo tempo, do qual sou dependente: tudo isso está na cena linda, angustiante, em que Samantha "desliga" e Theodore corre desnorteado na rua em busca dela - dela que não está nem pode estar em lugar algum.

Somos mortais imperfeitos e contraditórios - carregamos em nós um potencial, não somos programados, ou melhor, podemos programar a nós mesmos. Ser feliz nessa condição é abraçarmo-nos e conhecermo-nos na relação que temos com a presença do outro: buscando uma espécie de comunhão. Amor é isso. Escolher estar com alguém - ou "alguéns", uma escolha idealmente livre e aberta, quando feita por pessoas livres e abertas. Outras formas de relacionamento são doentios e quase sempre violentos jogos de poder.

Her é um filme bonito - não por ela, mas por ele. É ele quem cresce, se transforma, descobre mais sobre si mesmo, questiona suas certezas, desafia seus medos, enfrenta sua mesquinhez, erra, aprende - é humano. Ela também cresce, mas de uma forma irreal: desliga quando está prestes a explodir, resolve facilmente seus conflitos, seus momentos de angústia e confusão são curtos e logo esclarecidos, corrigidos, melhorados: Samantha é mais uma mulher completamente louca ou bem-resolvida (nunca o normal, conflituoso e real meio termo) figurante num filme sobre um cara sensacional e apaixonante.

E isso (e assistir os filmes indicados pela academia ao Oscar) me fez pensar que já chega. Chega de ver homens ou brancos ou americanos ou héteros (ou tudo isso junto) crescendo com seus conflitos e se desenvolvendo e sendo gente, como se só eles fossem capazes de fazer isso. E por isso não vou fazer a resenha de O Lobo de Wall Street (que odiei), Trapaça (indiferente) 12 anos de escravidão (necessário), ou Clube de compra de Dallas (meu preferido). Não que em Hollywood homens ou héteros ou brancos ou americanos não possam continuar fazendo seus filmes sobre eles mesmos - a arte deve ser livre, cada um conta a história que quiser, como quiser -, eu é que vou atrás de coisas diferentes pra ver (e viva a internet!). Aceito sugestões de gente que enjoou antes de mim e trilhou esse caminho mais cedo :)



3 de fevereiro de 2014

Álbum de família (filme)

“Life is very long..." TS. Eliot. Not the first person to say it, certainly not the first person to think it. But he’s given credit for it because he bothered to write it down. So if you say it, you have to say his name after it. “Life is very long:” TS Eliot. Absolutely goddamn right.
Com duas indicações ao Oscar de melhor atuação, Álbum de família/Um quente agosto (August: Osage County) é um filme que merece ser visto também pelo excelente roteiro, escrito pelo mesmo autor da peça que deu origem ao filme.

Maryl Streep é Violet, e vive em Osage County, um lugar perdido no meio de Oklahoma, com uma das três filhas e o marido. Após o desaparecimento do marido, as outras duas filhas voltam pra casa pra ajudar nas buscas e dar apoio à mãe. Uma das filhas é vivida por Julia Roberts, que volta pra casa dos pais com o marido (Ewan McGregor) e a filha adolescente (Pequena Miss Sunshine).

Depois de alguns dias, o corpo do pai é encontrado. O ponto alto do filme é o jantar do funeral. É como se o pai - um premiado escritor vivido por Shepard - fosse o frágil ponto de equilíbrio entre forças antagônicas e igualmente potentes (Violet e Bárbara, Maryl e Julia, mãe e filha). Com a morte dele o equilíbrio se desfaz, as aparências se esfacelam, e o que vem a seguir só pode ser uma cena forte, linda, brilhantemente protagonizada pelas indicadas ao Oscar de melhor atriz e melhor atriz coadjuvante. Faço aqui algumas notas sobre o filme.

- Maryl Streep sabe ser má - e mesmo assim despertar empatia na melhor das pessoas - como ninguém. A personagem dela é uma mulher amarga, egoísta, ciumenta, mesquinha, vingativa, chantagista e com um sangue frio de dar inveja a qualquer super vilã. E ainda assim é uma mãe que piamente acredita que faz o que faz porque é o melhor pras filhas e que a crueldade é uma forma de força indispensável para se vencer na vida.

- Julia Roberts mereceu a indicação por não ser "a" Julia Roberts no filme. Bárbara é uma mulher não-bonita, não-atraente, sem confiança, sem controle da própria vida, que se perdeu entre as expectativas dos outros e dela mesma. Ela age como acha que uma boa pessoa, boa filha, boa mãe deve agir. Por viver em torno de projeções e expectativas alheias é que perde o amor do marido, o carinho da filha e o respeito das irmãs. É a encarnação do politicamente correto, e só mostra alguma vivacidade ou energia quando é cruel, como a mãe. Porque não saber lidar com o que tem de parecido com a mãe - a força - é que ela se anula, porque não sabe - não aprendeu - a ser forte e boa pessoa ao mesmo tempo.

- É interessante ver como o câncer não é tratado como sentença de morte nesse filme. Nele, a doença não redime a personagem, não é o obstáculo-mor a ser superado, não molda caráter: não basta sofrer pra ser boa pessoa, é preciso fazer boas escolhas (essa mensagem não é das mais comuns em Hollywood!). O câncer é mais uma característica acidental da personagem principal. A doença na verdade é apenas um pretexto pra discutir o efeito devastador que o vício em drogas legal e indiscriminadamente comercializadas - os painkillers - tem sobre Violet e a família.

- Família, afinal o que é família? Que sentido faz forçar-se a conviver e a se importar com pessoas com quem não temos nada em comum, nenhuma relação de proximidade, afeto ou carinho, nenhuma boa memória compartilhada? Porque insistir numa "união" abstrata, formatada, pelo simples sentido de dever, por uma obrigação moral? Pelo fato totalmente aleatório e acidental de haver uma ligação genética entre essas pessoas? O que determina o que é família? A questão teórica levantada pela irmã mais velha, Ivy, é forçada às últimas consequências com a revelação da sua relação incestuosa.

- Incesto, um dos nossos tabus melhor preservados, até nele as mãos hereges de Tracy Letts consegue tocar em duas horas de filme. Que rumo terá seguido a vida de Ivy e Sherlock-Little Charles? Que rumo seguiria eu, no lugar deles?

Em duas horas, assistimos, como visitas que chegam à casa de alguém numa hora inconveniente, fragmentos de uma vida passada a limpo, a partir da morte de quem não aguentou o peso de anos de segredos, covardia e escolhas erradas. É um filme bonito, que conversa com as nossas noções mais íntimas e arraigadas de família, e que questiona uma a uma as prisões imaginárias que nos fazem insistir em estar perto de gente cruel e autodestrutiva, mesmo que isso signifique abrir mão das coisas que verdadeiramente amamos.

23 de janeiro de 2014

2 ou 3 coisas que sei sobre ela (filme)

O Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas a Mônica queria ver o filme do Godard...


A citação acima era a única referência que eu tinha sobre Gordard. (Embora eu sempre diga nas rodinhas cults que já vi Je vous salue, Marie, claro)

#diva #paris #nouvellevague
Pois então, seguindo a lista dos tantos filmes pra ver antes de morrer, assisti esse. Duas ou três coisas que eu sei dela é um filme sobre os limites da linguagem. Para falar sobre Paris, ou sobre a linda Juliette Janson, ou sobre o absurdo de abafar com propaganda e consumo os gritos que ecoavam da guerra no Vietnam, ou sobre a ressignificação do espaço urbano em tempos capitalistas e homogeneizantes, Godard precisa da linguagem, esse conjunto de símbolos, imagens, sons e palavras que tornam compreensível o pensamento humano. Só assim ele pode dar significado às coisas - e, dando-lhes significado, faz com que elas existam de fato: o que não pode ser nomeado não existe.
Assim, sua luta é a de conseguir fazer com que a linguagem - com seus limites - traduza e exteriorize sua consciência. O filme é ele todo essa tentativa, e a sua estrela é esse processo: as possibilidades e os impedimentos da linguagem, mostrados em quadros, fragmentos que dão a ver uma estrutura maior, é a linguagem como experiência e reflexão. 

O filme não tem história porque experimenta uma maneira de contá-las, as histórias. É um pré-filme, aberto, em construção. Entretanto, nesses fragmentos - duas ou três coisas, conhecemos a Paris e a dona de casa que se prostituem para manter o seu padrão de consumo suburbano de classe média, inflado pelos produtos novos que todos os dias chegam dos Estados Unidos. Vemos o aparente luxo, a modernidade superficial que brilha para velar o indizível, o irrepresentável: a guerra.

Acho que é um filme essencial pra quem se interessa por linguagem e semiótica. Pra quem não curte essas drogas mais pesadas, vale a pena pelos figurinos e pelos flashes glamourosos e modernosos da Paris dos anos 60. Quem quer saber mais fun facts sobre Godard, nouvelle vague e esses aspectos extra-obra, google it

#novinhos #work 
(Procuro fazer as resenhas a partir de reflexões que a própria obra me inspira - se eu preciso do google pra entender minimamente do que uma obra fala, ela falhou como obra pra mim, e eu falhei como audiência pra ela, não fomos feitas uma pra outra, sorry. Nesse sentido, confesso que meu orgulho pessoal foi ter entendido a referência de Godard a Bouvard e Pecuchet: uma estrelinha dourada a mais na minha carteirinha de cult que pega todas as referências, yeah!)



Além disso, pra quem quiser citar o filme sem tê-lo visto de verdade (acontece nas melhores famílias), fica a frase a linguagem é a casa onde o homem habita, que Godard estetizou a partir de uma formulação de Heidegger (essa referência eu tive que googlar) e a sensacional E se você não conseguir LSD, compre uma TV a cores.

18 de janeiro de 2014

12 homens e uma sentença (filmes)

Como uma das resoluções de ano-novo tenho o propósito de assistir um filme por dia em 2014 - como agora tenho tempo de sobra, não tenho desculpa pra não assistir, finalmente, aqueles filmes que eu sempre digo que já vi dez vezes quando quero parecer cult.

Sem saber bem como escolher os filmes, resolvi recorrer a uma dessas listas "tantos filmes pra ver antes de morrer". Ainda que a seleção me pareça um pouco arbitrária, é um começo concreto - e evita que minha resolução seja procrastinada.

Spoiler alert: minhas resenhas podem, eventualmente, trazer comentários sobre o fim das histórias, porque acho que ver o que quer que seja tendo como único interesse saber o final é um tanto quanto imaturo e superficial. Já sabemos todos como a história mais importante de todas - a nossa própria - termina, e nem por isso viver se torna menos interessante, né? Então, com filmes e livros é a mesma coisa.

Seguindo, então, essa lista, comecei por assistir* o filme 12 homens e uma sentença (12 Angry Men). A versão canonizada, must see, é a original, de 1957, mas eu, herege que sou, assisti as duas versões e preferi o remake, de 1997.

Como o título no Brasil deixa claro (em Portugal a tradução foi mais [?] fiel: 12 homens em fúria), um júri formado por doze homens tem a tarefa de decidir se um jovem porto-riquenho acusado de ter matado a facadas o próprio pai é culpado ou não. A decisão do júri - composto por representantes da sociedade civil americana aleatoriamente escolhidos - deve ser unânime, e dela não cabe recurso. 

Esses homens são colocados numa sala - praticamente a única locação do filme - onde deverão discutir até chegar a um veredito. Numa votação preliminar, onze votos indicam o réu como culpado, e apenas um considera que não há provas suficientemente irrefutáveis da autoria do crime. 

O júri é, então, obrigado a discutir novamente todas as evidências do caso, até que a unanimidade seja alcançada. E, na hora e meia de discussão que se segue, assisti um texto brilhante sobre racismo, preconceito, intolerância e direitos humanos. 

Sim, digo que assisti um texto porque, nas duas versões, é ele que importa. Sem efeitos especiais e sem locações deslumbrantes, é o texto que faz desses dois filmes imperdíveis. A direção e a atuação importam na medida em que privilegiam o texto - o calor da sala do júri realça a tensão do que está sendo discutido ali - a sentença de morte de um ser humano; os movimentos da câmera privilegiam a melhor compreensão do texto, não há excessos, há apenas a eloquência do texto, a principal estrela nos dois filmes.

Na versão de 57, os representantes da sociedade civil americana são todos homens brancos. Identificados pelo seu número - de 1 a 12, breves diálogos revelam que entre eles  há comerciantes, profissionais liberais, empregados da burocracia, um imigrante naturalizado. O homem que coloca em dúvida, sozinho, a culpa do réu é vivido por Henry Fonda, cujos olhos tristes eu não gosto. Mas não é só por isso que prefiro a versão de 97. Quarenta anos depois da primeira versão, entre os novos doze representantes da sociedade civil americana agora há negros - e colocar um deles no papel do jurado que faz o discurso mais francamente racista e xenófobo de todos foi uma jogada sensacional.
Essa versão, por mais próxima e por atualizar de maneira eficiente os conflitos presentes no primeiro filme, conversa mais comigo, e é por isso que gosto mais dela.

Um a um, os jurados são convencidos, por meio do debate, de que as provas apresentadas no tribunal não são suficientemente definitivas para que o jovem réu seja considerado culpado. Não se trata de julgá-lo positivamente inocente, trata-se de não se poder dizer, com absoluta certeza, que ele é culpado. Pode ser, e pode não ser - e essa dúvida, de acordo com a letra da lei, é suficiente para que ele continue vivo - já que a condenação implicaria sua sentença de morte.

a melhor cena da versão original:
o discurso honestamente xenófobo
 que exige dos outros membros do júri
uma tomada de posição
A exposição dos argumentos que tomam por irrefutável a culpa do jovem revela um discurso assombrosamente preconceituoso e desgraçadamente atual: é culpado porque deve ser culpado, porque nada indica que seja inocente, porque nasceu num cortiço - produtor de bandidos por excelência, porque essa gente é criada pra ser violenta, porque é da natureza deles roubar e matar, porque não se pode esperar nada de diferente desse tipinho. (acho mesmo que li todos esses argumentos ontem, nos comentários de uma notícia qualquer que envolvesse negros ou pobres no Brasil - supondo que não sejam sinônimos). 

O gesto revolucionário do homem que se nega a decidir tão sumariamente a sorte de outro é o de elevar esse outro ao status de um igual - é a empatia de colocar-se no lugar desse outro, de imaginar-se a si mesmo réu, imigrante, pobre, indefeso - e a partir daí dedicar seu tempo e seu esforço a discutir se a culpa presumida pode ser considerada culpa materialmente comprovada.

Esse texto me remeteu imediatamente aos nossos julgamentos públicos e midiáticos, em que a culpa presumida é mais do que suficiente para que alguém tenha a honra manchada, a vida devassada, a privacidade invadida. Nomeadamente, casos como os da menina Isabela Nardoni e do Mensalão me vêm à mente - casos cujo julgamento foi pro-forma, porque a condenação da opinião pública clamava pela execução sumária da reputação dos julgados tão logo os casos tornaram-se conhecidos.

Versão de 97,
minha preferida e a que eu indico
Me pergunto se eu teria a coragem de ser o homem que levanta a dúvida, que respeita o princípio democrático da presumibilidade da inocência de quem quer que seja, correndo o risco de ser eu mesma rotulada como advogada do diabo, como cupincha de criminosos, como cúmplice de crimes hediondos. Quero ter essa coragem, porque sendo eu o réu - e nada me garante que eu nunca venha a sê-lo, gostaria que alguém levantasse essa dúvida por mim.


Se o filme tivesse que ser refilmado hoje, seria impossível não colocar entre os representantes da sociedade civil americana também mulheres - o que daria um novo fôlego pra esse mesmo texto que, encenado há quarenta anos, continua sendo revolucionário, forte e necessário. 

Bom, menos um filme na lista dos que eu sempre digo que vi e nunca tinha visto de verdade! Faltam agora 364 filmes para cumprir a meta do ano. Não vou resenhar todos, porque resenho só as coisas de que gosto. Aceito indicações de mais filmes, e, para o blog, aceito - e quero! - resenhas feitas por vocês, do que quer que seja :)

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* uso o verbo "assistir" como transitivo direto, porque o contexto é suficiente para a perfeita compreensão do sentido do verbo por qualquer falante nativo de português - tenho certeza que não ocorre a ninguém que eu vá "ajudar" o filme, né?

16 de janeiro de 2014

A morte de Ivan Ilitch - livro

Ivan Ilitch sabia que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo.

Imagine um homem que passou a vida a buscar momentos e situações confortáveis, que não apresentassem perigos ou contratempos, que fossem idealmente adequadas à sua noção de conforto e estabilidade. Um homem que sempre enxergou a si próprio como especial e único, merecedor de todo o bem-estar do mundo que lhe caísse no colo, que pudesse obter com o mínimo de esforço - ou ao menos sem que fossem necessários grandes investimentos que pusessem em risco a segurança de seu modo de viver, o conforto de suas relações, a superficialidade do verniz com que cobria sua existência.

Imagine que esse homem, que jamais lutou por nada, mas achou-se naturalmente merecedor de tudo, descobre que é mortal no momento em que começa a morrer.

#descanso #profeta #susse
#outdoor #façaamornãofaçabarba
Essa é a história de "A morte de Ivan Ilitch", romance publicado pelo russo Lev Tosltoi, em 1886. A grande surpresa dessa leitura - indicada pra mim pelo professor Paulo Bezerra no dia da defesa da minha dissertação de mestrado - foi perceber que algo que é comumente é identificado como um fenômeno ultra-hiper-pós-moderno, único e específico da nossa época, é tão antigo quanto a noção de que o ideal de uma vida satisfatória - e talvez até plena - é ter o máximo possível de conforto e comodidade.

Ivan Ilitch morre lentamente, tão lentamente quanto o tempo que precisa para perceber que sua vida confortável e sem riscos foi, afinal, um grande desperdício de oxigênio - e que aquilo a que chamava "viver" não passou de uma sombra, um jogo mal jogado de aparências e superficialidade.

#work #gênio #newbook
#lidecomisso,Dosto!
O título do livro não ilude o leitor sobre o desfecho da história - o que importa, então, é saber apreciar com fascínio o caminho magistralmente desenhado pelo autor. Tolstói dá a ver a agonia do personagem que se debate entre vãs esperanças e um insistente apego àquilo que chamava de Verdade. Ivan Ilitch não pode morrer até que tenha deixado de insistir no que chamava de vida - antes de morrer - e libertar-se finalmente da dor - Ivan Ilitch precisa desistir de viver, para então, viver pela primeira e derradeira vez.

Recomendo a leitura - que é rápida, comovente e intensa - a todos que desconfiam que o que chamam de vida - ainda mais se for uma vida satisfatória e confortável - não é bem vida, mas qualquer outra coisa feita de plástico ou de borracha ou de bits, com sabor e aroma artificial de morango ou tutti-frutti, vendida a prestação numa vitrine brilhante, por uma funcionária sorridente de uma marca multinacional. 

A morte de Ivan Ilitch é a morte - a agonia - de todos os que morrem sem nunca ter vivido - um fenômeno tão antigo quanto a noção de que a vida ideal é confortável, tão atual e presente quanto anúncios que vendem vidas de 60 polegadas, tão doloroso e cruel como descobrir a inutilidade de tudo o que se viveu no momento em que se está morrendo.

13 de novembro de 2013

José e Pilar - documentário e livro

José e Pilar é um documentário de Miguel Gonçalves Mendes, português, numa produção brasileira, espanhola e portuguesa. Durante 2007 e 2008, a equipe do documentário acompanhou a rotina de José Saramago e Pilar Del Rio, e a partir do material coletado e das entrevistas, Mendes contou uma bela história de amor, companheirismo e compromisso com o trabalho por um ideal.


Depois do sucesso do filme, foi lançado o livro José e Pilar - conversas inéditas

Eu estava cheia de ideias pra essa resenha, mas acabei de reler o Prefácio ao livro escrito por Valter Hugo Mãe, e, bem, o homem escreve bonito. Deixemos que ele fale.

DIÁLOGOS

A expressão de José Saramago teve sempre que ver com a oportunidade do homem comum. A sua voz, tão aparentemente simples como sábia, aspirou sempre à universalidade e o que mais fez foi revelar. 
[...]
O que o trabalho de Miguel Gonçalves Mendes tem representado para o tesouro do testemunho de Saramago é de valor inestimável. É o melhor dos legados para todos quanto vivem e viverão, permitidos que ficam para o acesso à intimidade com o grande mestre, ou, por outras palavras, para o acesso a um diálogo eminentemente desmascarado com o grande mestre. Mas o grande mestre nunca estaria completo nesta sua dimensão mais pessoal sem a companhia de Pilar del Río, tão distinta quanto já complementar do escritor.
Em certo sentido, e porque talvez o grande patrimônio de José Saramago no que respeita às suas ideias se estendeu por tantos livros e infinitas entrevistas, é em Pilar del Río que este volume encontra o seu mais raro documento. A par de tantas declarações e explicitações de Saramago, é o retrato de Pilar que adquire uma força impressionante, força que creio já não surpreender ninguém, e que creio estar também na base da grande comoção que tem criado o documentário José e Pilar e que agora, com este livro, se adensa. Pilar del Río é, sem dúvida, uma das mais imperdíveis mulheres dos nossos dias. De opiniões rotundas e sensibilidade austera, é uma mulher de inteligência quase assustadora, reclamando para si a liberdade intelectual que, por contínuo preconceito, muito se deixa reservada para os homens. Eu arriscaria dizer que este livro é a oportunidade, nossa, a dos leitores, de encontrar Pilar e, por isso, completar Saramago. É a grande partilha com ela que permite entender melhor o universo do escritor, o espaço afetivo em que se movia o incondicional da construção familiar em que se viu protegido, ou, como se deve dizer, onde se viu amado.
Miguel Gonçalves Mendes talvez não o soubesse quando a isso se propôs, mas agora é cristalino que o seu trabalho, assente na sua persistência simpática, oferece ao mundo um recurso de tão grandiosa importância. Uma importância até emocional, que comove, por nos permitir seguir com o mundo como se Saramago estivesse ainda vivo. Claro que o seu discurso está vivo e quem somos ainda urge pela utopia humanista que tinha para nós. O mundo vai precisar de José Saramago por muito e muito tempo. Desconfio que para sempre. Este livro é uma oferta generosa para a satisfação dessa necessidade.

Perguntam a Pilar "É difícil ser presidenta da fundação (José Saramago)?" e ela responde "é difícil ser mineiro". 

E pronto. E é isso. Pilar é uma mulher privilegiada (porque educada, porque europeia, porque branca, porque famosa, rica, influente) que sabe muito bem o que deve a esses privilégios: trabalho, energia, compromisso. Foi com essa consciência que trabalhou com e por José, a despeito dos murmúrios de que ele precisava descansar. Essa consciência é exatamente a antítese do pensamento classe-média-sofrista e é por isso que, para nós, bunda-moles mimimizentos que somos, soa tão radical ouvir uma mulher que não se deixa sentir-se cansada ou triste. Mas isso é fantástico, porque é disso que o mundo precisa: de gente que possa trabalhar por mundo melhor e que, de fato, trabalhe por um mundo melhor. 

A história de José e Pilar é um exemplo (meu exemplo) de que amor nada tem a ver com dependência ou com anular-se para que o outro apareça. Amor é companheirismo, não concorrência.
Pilar é jornalista, escritora e presidentA de uma das mais recentes e, já, importantes fundações culturais de Portugal, e dedicou seu trabalho a ampliar o alcance do trabalho de Saramago porque acreditava pessoalmente na grandeza e na importância de sua obra, e não somente porque José era seu marido. 
José é o grande Saramago, primeiro e único Nobel de literatura em língua portuguesa, exilado e censurado em seu país, acolhido pela Espanha e por Pilar, em Lanzarote, onde não deixou de trabalhar, onde trabalhou até que a vida cessasse.

Amor, força, ternura, compromisso, liberdade, coragem, afeto. A história de José e Pilar tem muito a nos dizer sobre nossas próprias histórias.

Assista o filme aqui. Escute a trilha sonora aqui. Leia trechos do livro aqui.

5 de novembro de 2013

Cultura e Estudos Culturais

Dia desses, publiquei um post revoltadinho no facebook. Como texto revoltadinho não leva ninguém a lugar nenhum, aqui vai um comentário mais elaborado sobre uma questão que considero importante.

A proposta desta disciplina "Cultura e estudos culturais", umas das quatro que farei nesse primeiro semestre (lembrando que o ano acadêmico no hemisfério norte não coincide com o ano civil), é levar-nos a uma reflexão sobre o desenvolvimento dos estudos culturais em determinada cultura. No caso, a inglesa, porque é a área de interesse da professora, inglesa.

A nossa primeira leitura obrigatória foi "Cultura e Anarquia", de Matthew Arnold, pai dos estudos culturais na Inglaterra. O ensaio de Arnold exorta os homens a procurarem a perfeição, por meio da cultura, que é o resultado da doçura e da luz, doçura, beleza, luz, inteligência. Para Arnold, essa é a vocação maior do ser humano, independentemente de sua classe (baixa, média ou alta, classes bem determinadas e estanques), e qualquer outro tipo de prática social e política que não considere esse ideal máximo de iluminação nos levaria a um estado de anarquia e obscuridade.

A segunda leitura foi "Ficção e o público leitor", em que Quenny Leavis faz um estudo detalhado sobre o fenômeno dos best-sellers no início do século XX. É uma tese de doutorado, cujo argumento principal é o de que o aumento "descontrolado" do letramento na sociedade inglesa levou a uma deterioração da qualidade do gosto popular. Se nos séculos XVI, XVII, e até meados do século XVIII não havia tantos leitores, pelo menos o que se lia era de qualidade: difícil, elaborado, com um bom vocabulário: Shakespeare. Ao contrário do que se vendia em profusão na atualidade dela, livros de fácil digestão, que retratavam personagens vulgares - tão vulgares como o público ao qual se destinavam. Basicamente, ela classifica como de "baixa cultura" tudo o que depois Ian Watt identificou como o gênero mais amado até os nossos dias: o romance.
Vocês podem imaginar o sofrimento que foi para os alunos do doutorado em literatura e cultura, que têm entre suas pesquisas principalmente a valorização das vozes de quem foi sempre tachado como "subalterno", que tentam enxergar o mundo sob uma ótica mais igualitária e justa, ler esse tipo de texto preconceituoso e elitista. O sofrimento virou revolta no debate em sala de aula, claro. Mas a proposta era lermos como de cabeça aberta, procurando validar os argumentos apresentados, afinal, eram textos que foram fruto de muita reflexão.

E então percebemos que, ainda que para nós cada linha pareça absurda e ofensiva, ainda hoje não seria - não é - difícil encontrar quem não veja problema algum nesse tipo de argumento, o de que há uma elite culta que deve selecionar o que é bom e o que é ruim, baseando-se em critérios estéticos imparciais e universais, e recomendar fortemente o que for considerado bom para a maioria inculta, para que dessa forma todos possam um dia, lentamente, atingir um estado elevado de cultura. 

Para Arnold, o padrão de beleza e bondade eram os ideais clássicos. Para Leavis, o drama elizabetano: Shakespeare (leiam shakespeare ou não leiam nada!). Ambos estavam seriamente preocupados em estabelecer padrões mínimos de qualidade, e não deixar que as massas estivessem sempre alienadas pelas coisas de má qualidade que eram vendidas sob boas propagandas. Que mal há nisso, não é mesmo? Quem de nós não quer que as pessoas parem de assistir big brother e comecem a ler Machado de Assis?
(a Leavis não quereria, Machado é romancista, e romance é coisa de gente preguiçosa)

Bom, ainda que esteja cheio de boas intenções, como o inferno, esse tipo de discurso não leva em consideração uma coisa um tanto quanto importante para nós, que defendemos um modelo humanista de educação: a autonomia de cada pessoa. Sim, por que quem vai definir o que é "bom"? o que é essencialmente de "qualidade"? Que poder é esse que a elite econômica e intelectual se arroga de determinar o que presta e o que não presta? Baseada em quê? Tradição? Como se essa própria tradição fosse algo imutável, indiscutível, estanque. Houve tempos em que os clássicos não serviam mais como modelo de perfeição. E depois eles voltaram, e depois foram embora, e depois voltaram de novo. E o romance? O que hoje é considerado erudição, ontem era folhetim de quinta, feito pra vender jornal. E amanhã, quem garante que o nosso must-to-hate Paulo Coelho não será o baluarte da grande literatura brasileira?
Além disso, que valor pretensamente universal de qualidade é esse que vai dizer que o que é bom para a sociedade aristocrata inglesa é bom também pra mim, brasileira, mulher, negra, "pós-colonial", enfim, criada em numa realidade prática totalmente diversa, heterogênea, desigual? 

Um pensamento que se proponha considerar todas as pessoas como iguais em direitos e capacidades, não pode admitir que algumas delas são mais capazes de discernir o que é bom e o que é ruim do que outras. É óbvio que não estou defendendo de forma nenhuma as gerações atuais parem de educar as gerações seguintes - eu sou professora por formação!

O que estou dizendo é que "educação" pode significar várias coisas. Pode ser instrumento de dominação ou de liberdade. Depende do tipo de regime que o impõe. Se, num contexto micro, os pais educam seus filhos para que continuem a obedecer o que os pais acham correto, verdadeiro, sublime, importante, e não se deixem corromper por interferências externas, o que esperar de um regime político governamental que quer evitar todo e qualquer tipo de rebelião, contradição, desordem, insurreição?

Pois é, não é tão simples assim. Não é questão de ponto de vista: esses autores não só estavam defendendo seus próprios gostos: pelo contrário, trata-se ali de defender o que é, por excelência, bom, não é um gosto pessoal, "por acaso", eu gosto do que é bom, e você, pobre coitado, não. "Por acaso", eu, letrado, educado em boas escolas, intelectual, erudito, classe média alta ou rico, sei o que é bom, e você, ralé, não. Mas não se preocupe: sou tão legal e gente boa e desprendido que posso até te ensinar. Você só vai ter que renegar tudo o que você experienciou como válido e bom até agora e começar comigo do zero. Me agradeça depois.

Essa aparente "neutralidade" é que é o problema. Porque ela não existe, é falsa. Os nossos gostos são condicionados por milhões de influências e contatos, que por sua vez são resultados de relações de poder. Nós, intelectuais, não podemos negar a qualquer pessoa, sim, qualquer pessoa o seu direito ao pensamento autônomo, ou melhor, não podemos deixar de reconhecer em qualquer pessoa a sua capacidade potencial de desenvolver um pensamento autônomo. Se tem que haver educação, e é claro que tem, ela deve ser baseada em princípios de liberdade, de escolhas: a educação formal deve oferecer ferramentas de desenvolvimento e refinamento do pensamento, e não respostas prontas e inquestionáveis.

Por isso, não faz sentido falar de cultura em nível qualitativo. Existem culturas diferentes, que se constituem como conhecimento compartilhado, que podem originar comportamentos positivos ou negativos sob certos aspectos. Isso vai  sempre depender dos critérios de avaliação que estão sendo adotados, e estes devem ser expostos como parciais - porque o são - e devem identificar a sua filiação ideológica de maneira clara e honesta (sonhar não custa, né?).

Enquanto esse surto de honestidade não acontece, cabe a nós, pensadores da cultura do século XXI, dar a conhecer o que está por trás desse desejo benevolente, no caso, inglês do fim do séc XIX, começo do XX, de ter, um dia, com ordem e hierarquia, e com as pessoas "certas" no comando, uma sociedade iluminada e culta. Preconceito, ignorância, presunção, arrogância e, mais importante, um profundo apego ao status quo de centro pensante do mundo, são algumas das idéias perigosas e autoritárias que enformam esse tipo de discurso, e que, de maneira preocupante, sobrevivem até hoje. Temos muito trabalho pela frente.